O ano novo católico começa em novembro?
Por muitos anos fui catequista e atendia os catequizando e seus pais sobre diversas questões que eles se colocavam sobre a sua experiência de fé dentro das suas comunidades. Grande parte dos pais queria entender melhor como funciona a liturgia da Igreja e como são divididos os tempos litúrgicos. Uma das perguntas que mais me chamou atenção ao longo destes anos foi a de um destes pais que queria entender “por que o ano novo dos católicos começava em novembro”. Parece ingênuo, mas é uma pergunta que faz todo o sentido, uma vez que não há como falarmos de uma divisão de tempo sem compararmos com o nosso calendário civil. Acredito que todas as perguntas são muito boas se nos atentarmos ao que realmente se quer saber. Para responder a esta pergunta, acabei tendo que estudar bastante o ciclo litúrgico da Igreja e isto acabou sendo importante para o meu crescimento e a minha formação cristã. Por isso, para responder tal pergunta, convido você a passear comigo neste artigo que trata sobre as origens litúrgicas do cristianismo.
A liturgia cristã é antiquíssima, remonta aos primeiros seguidores de Jesus, que começavam a celebrar a memória do mestre, fazendo a difícil transição do dia sagrado judaico, o shabat (sábado) para o primeiro dia da semana, no qual Jesus havia ressuscitado. Os cristãos, sendo majoritariamente judeus, foram formados por uma tradição litúrgica muito própria deste grupo.
A liturgia judaica segue fundamentalmente o ciclo lunar. Isto porque o céu noturno está cheio de referências, como o “movimento e as formas dos astros”. O shabat, por exemplo, sempre começa com o aparecimento das primeiras estrelas no céu da sexta-feira e termina com o aparecimento das primeiras estrelas do sábado. Outro dado importante é que estamos falando de um povo situado no hemisfério norte, por isso, a referência às estações são diferentes das nossas do hemisfério sul. O ciclo lunar e o hemisfério norte são também referências para a liturgia cristã.
Os judeus celebravam ao longo do ano suas grandes festividades: Rosh haShanáh (Ano Novo judaico), Yôm Kippur (Dia das Expiações), Sucot (Festa das tendas ou cabanas), RRanuká (Festa da dedicação do Templo de Jerusalém), Purim (festa que faz memória da Rainha e Ester e aos judeus da Pérsia), PêssaRR (Páscoa dos judeus) e Shavuot (Pentecostes). Existia uma estrutura litúrgica para estabelecer a forma, as datas exatas destas festividades e o modo como o povo devia celebrar. Algumas destas festas eram chamadas “de peregrinações” (Sucot, PêssaRR e Shavuot), pois os judeus tinham a obrigação de ir para o templo de Jerusalém celebrá-las. Internamente, neste ciclo litúrgico, existiam festividades menores e o ciclo das leituras da Toráh, que durava todo o ano litúrgico e recomeçava no final do período de Sucot. Deste modo, os cristãos, de alguma forma, foram os herdeiros de toda essa estrutura litúrgica e aos poucos começaram a readaptá-la com outros elementos culturais fora de Israel compatíveis com a fé cristã.
Para os cristãos, a centralidade da vida e da paixão de Jesus sempre foram os aspectos celebrativos mais importantes. Por isso a liturgia da Páscoa é a mais antiga da Igreja. O tríduo pascal (domingo de ramos, quinta feira do lava-pés, sexta-feira Santa) e a festa de Pentecostes, são sem dúvida as celebrações mais antigas do cristianismo. A data da Páscoa é móvel, obedecendo ao calendário lunar, fixou-se a Páscoa no primeiro domingo que segue a lua cheia após o equinócio da primavera (do Hemisfério Norte). No século terceiro, por causa do grande número de pessoas que aderiam ao cristianismo, começou-se a estruturar também uma liturgia preocupada com o batismo e com a penitência. A Quaresma (tempo de preparação para a Páscoa) foi tomando forma assim. O ciclo do Natal foi se estabelecendo ao longo do século IV, com a preocupação de um estabelecimento litúrgico do nascimento de Jesus, no Concílio de Niceia I (325 d.C.). Com o ciclo do Natal, também foi proposto uma preparação: o Advento.
Pode-se dizer que a liturgia cristã foi marcada pela inculturação, ou adaptação cultural, ao longo dos séculos, por isso, ela é ao mesmo tempo unificada e tão distinta. Antes de uma maior centralização do cristianismo, havia uma forma muito autônoma das comunidades se organizarem, gerando mesmo datas distintas para uma mesma celebração. O fato é que existem diversas liturgias cristãs formadas ao longo dos tempos como a latina romana, a ortodoxa bizantina, grega, armênia, siríaca, copta... E dentro de cada uma delas, existe uma infinidade de ritos, por exemplo, na liturgia latina, existem o rito ambrosiano, o rito bracarense, o rito galicano, o rito moçárabe, o rito dos cartuxos e o uso Anglicano. E ainda, na própria liturgia latina romana, existem duas formas de se celebrar: o ordinário (o qual costumamos participar aos domingos nas nossas comunidades) e o extraordinário (que é o modelo tridentino, rezado em latim).
De maneira geral, a liturgia cristã é complexa e sempre atenta ao equilíbrio entre a atualização cultural e a conservação da tradição. O último concílio ecumênico da Igreja Católica, o Concílio Vaticano II, se dedicou muito a uma autêntica reflexão litúrgica. O documento Sacrosanctum Concilium, redirecionou a Igreja Católica a uma reforma litúrgica preocupando-se em evidenciar que o centro da fé cristã (e de suas celebrações) não pode ser desviado da pessoa de Jesus Cristo. E mais, que as celebrações devem ser vivenciadas pelas pessoas com toda a consciência, pois é a vida que se celebra, deste modo, a compreensão do que se celebra é essencial. Ainda hoje, diversas pessoas, leigas e religiosas, estudam profundamente todos os aspectos da liturgia cristã, desde a arquitetura dos espaços sagrados, as vestes litúrgicas, os cantos, os ritos, a arte... Também se percebe diversas posturas teológicas hoje que debatem sobre o sentido da inculturação e da missão da liturgia como autêntica celebração da fé cristã no mundo. Desafios e perspectivas se abrem e se desdobram para o futuro.
Espero que este breve passeio sobre as origens da liturgia tenha nos aberto novas perspectivas sobre a sua vivência da fé cristã. As dúvidas nos abrem possibilidade de ir mais fundo nas questões. E voltando a pergunta inicial, o fato é que não podemos afirmar que haja um “ano novo católico”. O que existe é o fim do ano litúrgico e o início de outro. Atualmente a liturgia Romana divide o ano litúrgico em ciclos: Advento-Natal, Tempo Comum, Quaresma-Páscoa, Pentecostes, Tempo Comum II. São 33 ou 34 semanas de Tempo Comum ao longo do ano litúrgico, divididas em duas partes. O último domingo do Tempo Comum é marcado pela Festa de Cristo Rei, a última solenidade do calendário. No domingo seguinte já se inicia o Advento, que dá início a um novo ano litúrgico. Na verdade o Advento não tem data fixa, pode começar no final de novembro ou início de dezembro, dependendo do ciclo do Natal. Não é necessário festas, nem fogos, uma vez que o Advento é um tempo de espera, reconciliação, renúncia e transformação de vida. A data do Natal, o dia 25 de dezembro, que já foi considerada início do ano novo na antiguidade, para os cristãos, tem muito mais importância do que o ano novo, propriamente dito. O Natal é uma experiência de fé que nos convida a colocar a humildade e a pobreza do menino Jesus e da Sagrada Família como sinais cristãos em um mundo que valoriza em demasia o dinheiro e o poder.