É verdade que 90% dos reis de Israel foram ruins ou péssimo?
Foi descoberto recentemente em Israel um selo cerâmico utilizado pessoalmente por um dos reis mais importantes da história do povo de Israel: Ezequias (ver vídeo abaixo). Essa descoberta é importantíssima para a arqueologia bíblica, que procura incansavelmente por evidências que ajudem a esclarecer acontecimentos, histórias e personagens que são apresentados na Sagrada Escritura.
Sobre a história dos reis de Israel se possui quase nada ou pouquíssimas evidências arqueológicas. Justamente por isso, muitos até questionam a existência, ou ao menos a importância, de muitos destes reis. A reação dos estudiosos ao encontrar um objeto tão pessoal de um rei é impressionante. É como se pudéssemos tocar a história e o próprio rei com as mãos. Porém, essa descoberta arqueológica nos leva a algumas perguntas importantes: quem foi esse rei? Por que isso é importante se já temos Jesus? Por que tanta atenção com os reis de Israel?
É um equívoco achar que os cristãos só devem ler ou se preocupar em estudar o Novo Testamento. Para compreender a mensagem de Jesus e os escritos neo-testamentários é imprescindível compreender a história do povo de Israel. Lembrem-se que todos os primeiros cristãos eram judeus e estavam inseridos dentro desta milenar cultura. A referência religiosa deles era o Antigo Testamento e a história ancestral passada pelos sábios e mestres. É justamente por isso que os Evangelhos de Mateus e Lucas apresentam uma lista genealógica de Jesus, para evidenciar para os seus leitores que ele tinha uma ligação forte com o passado judaico, com a história do povo de Israel.
Para esclarecer, o povo de Israel, após o retorno do Egito estava organizado de forma tribal. O povo havia se espalhado pelo território da Palestina, organizados pelas suas tribos de origem. Eles eram dirigidos pelos chamados juízes, homens (e também mulheres) que ajudavam a manter a ordem, o direito e a ética religiosa. Aos poucos essa organização tribal foi transitando para uma monarquia rudimentar, que teve como objetivo uma maior centralização na figura de um rei, a busca de uma unificação étnica, política e religiosa do povo. Porém essa monarquia encontrará problemas graves e acabará dividindo o povo e o reino. Após essa divisão política, as crises de identidade, de autocompreensão que eles constituem um povo único serão abaladas. Isso afetará gravemente a experiência de fé do povo e o culto ao Deus de Israel. Neste contexto de crise vamos encontrar o surgimento de um movimento que marcará toda a história deste povo: o movimento profético. Os profetas foram, de modo geral, pessoas religiosas vocacionadas, que falavam em nome de Deus contra os sistemas corruptos e o distanciamento dos governantes e do povo em geral da fé autêntica no Deus de Israel. Eles tinham uma mensagem ético-religiosa e muitas vezes criticavam duramente o governo dos reis e mesmo o sistema religioso vigente. Por isso muitos reis e poderosos os temiam, muitas vezes os odiavam de morte! Esses profetas vocacionados eram bem diferentes dos profetas da corte, que faziam o serviço oficial de consulta a Deus para os reis. Estes eram pagos pelas autoridades para profetizar e, evidentemente, suas profecias estavam ideologicamente comprometidas, pois eles não queriam perder o emprego e nem o pescoço ao se opor aos interesses reais.
A história dos reis de Israel está narrada de modo um pouco disperso na Bíblia: estão concentradas nos dos livros de Samuel, nos dois Livros dos Reis e nos dois Livros de Crônicas. Em Samuel temos as narrativas da transição do sistema tribal para o sistema monárquico, a escolha de Saul, primeiro rei de Israel (assim como a sua morte), a preparação para reinado de Davi e seus desafios para unificar as tribos. O reinado de Davi é narrado ao do segundo Livro de Samuel. Este é interessantíssimo pelas viradas políticas e a astúcia do rei de conquistar territórios e coração do povo; obviamente também inimigos, entre eles o seu próprio filho Absalão, que preparou um golpe de estado. Nos dois Livros dos Reis encontram-se diversas histórias dos reis em um período de quase quatrocentos anos, a começar pela história de Salomão, sucessor de Davi até as quedas do reino do Norte e do reino do Sul. O livro de Crônicas, conta de modo bastante ideológico a história de Davi e dos reis do Sul. Todos estes livros estão preocupados mais com a teologia do que com a história, por isso, muitas vezes a leitura gira sobre o prisma religioso e não político.
As narrativas partem da morte de Davi e sobre a escolha divina do novo rei, Salomão, e como ele construiu o Templo em Jerusalém, como modo de finalizar um projeto de seu pai Davi. Salomão administrou Israel com sabedoria e mão de ferro, mas o seu reino estava fadado ao fracasso. As alianças políticas obrigaram o rei a admitir novas religiões e costumes dentro do território, algo que enfraquecia a unidade e, obviamente, não agradou a todos. Os desmando do rei e as altas taxas para custear a burocracia e o harém do rei, estavam na lista das queixas de toda a população. O resultado é que com o envelhecimento e a morte do rei armou-se uma conspiração que provocou a divisão do reino. O sucessor de Salomão, Roboão, acabou ficando com a região sul do território, chamada Judá, tendo como capital Jerusalém; os conspiradores, com seu novo líder, Jeroboão, partiram para as regiões mais ao norte com parte significativa de dez das doze tribos que formavam o povo de Israel. Com este grupo de pessoas, nesta região, foi iniciado o “Reino de Israel”. A capital foi se estabelecendo aos poucos, até finalmente se fixar na cidade de Samaria. Lá também foi estabelecido um templo e um sistema cultual, semelhante ao do templo de Jerusalém. Assim, o povo que até então mantinha laços de unidade se partiu, perdendo a sua característica mais importante: a identidade.
O resultado deste triste acontecimento foi que a partir desta divisão, duas descendências reais começaram a existir paralelamente: a do sul, que mantinha a descendência davídica e a do norte, de reis que chegavam ao poder por meio da violência e de golpes. O reino do norte tentou em algum momento manter uma mesma família de reis no governo, mas sem significativo sucesso, pois não havia laços fortes de origem que justificassem um poder real inquestionável. E tais transições eram muito violentas! Geralmente toda a família e, principalmente, os herdeiros dos reis destronados eram mortos. Além desta questão complicada, para se manter como governante, os reis faziam alianças com nações vizinhas para comercializar e ter aliados em situações de guerra.
Mas nem as alianças ajudaram a proteger o reino do Norte. No século VIII, com a ascensão do império Assírio, os pequenos reinos do Oriente foram massacrados, escravizados e destruídos. O ano 722 a.C. marca o fim trágico do reino do Norte. Cidades destruídas, rei e suas famílias presos e deportados, muito sangue pelas ruas. Grande parte da população foi levada para regiões dominadas pela Assíria e os poucos remanescentes foram misturados a cativos de outras partes do mundo dominado pelo Império Assírio, como tática de guerra para dissolver a identidade cultural do povo. Depois disso, o reino do Norte desapareceu, assim como grande parte do povo que compunha as tribos que, no passado, decidiram romper com o sul.
Mesmo sobrevivendo por mais tempo, o Reino do Sul também teve um destino semelhante, desta vez com o império Babilônico no século VI. Este já dominava externamente a região e havia deposto e colocado reis no reino do Sul acreditando que estes lhe seriam submissos, mas como todos se rebelaram contra o seu domínio, a Babilônia não teve misericórdia. Sitiou a cidade de Jerusalém e depois de ter tomado grande parte do território do sul, em 586 a.C., a situação chegou ao limite. Os muros da cidade santa, o templo e maior parte das casas foram destruídos. A família real, os pensadores, o povo que poderia ter serventia para trabalhos servis foram levados para o exílio na Babilônia. Este foi o fim dramático do Reino do Sul, mas não o fim da história do povo.
Para os autores bíblicos, o balanço geral da história dos reis é impressionante: todos reis do norte não foram fiéis ao culto do Deus de Israel e patrocinaram religiões estrangeiras para agradar suas consortes ou para facilitar as transações comerciais. No sul, isso também aconteceu. Mesmo com o templo de Jerusalém e um complexo sistema cultual. Os reis se utilizavam da religião oficial para justificar o seu poder sobre as pessoas. Paralelo a isto, os outros cultos estrangeiros incorporados no território eram tolerados e muitas vezes patrocinados pelos governantes. A corrupção e o abuso do poder eram constantes. A crise era generalizada a ponto de apenas alguns poucos entre todos os reis puderam ser vistos como ótimos para os autores bíblicos: Asa (910-869 a.C.), Josafá (872-848 a.C.), Ezequias (715-686 a.C.) e Josias (640-609 a.C.). Todos estes reis estavam preocupados com a lei de Deus, buscaram o desenvolvimento do seu território e de sua gente, e os dois últimos, em especial, se dedicaram às reformas religiosas e o fim do paganismo.
O selo real de Ezequias, encontrado em Israel, lembra-nos um homem que além promover uma reforma ética e religiosa para o povo, fortaleceu os muros da cidade, construiu canais subterrâneos que abasteciam a cidade de Jerusalém, mesmo quando esta estava sitiada. Por causa disto, ele resistiu aos ataques da Assíria, quando esta era uma grande potência ainda, e saiu milagrosamente vencedor deste embate. Um governante justo e bom. A providência divina e a história nos resgatam hoje a memória de um homem que realmente se preocupou com seu povo e, por isso, o seu nome nunca será esquecido e apagado. Este rei foi exemplo para os profetas, que tiveram a intuição de anunciar que o messias saberia ser justo com as pessoas e honrar a Deus sobre todas as coisas.